Introdução ao fundamento da hierarquia clerical



Autor: pe. Pablo Neves

INTRODUÇÃO

        Neste roteiro de estudos bíblicos o objetivo é a apresentação do embasamento bíblico que, junto à Tradição, fundamenta a composição da hierarquia clerical a partir da apostolicidade da Igreja, tanto em seu caráter histórico e doutrinal, quanto missiológico. São apresentadas, concomitantemente às afirmações feitas, as referências bíblicas que contextualizam a formação do entendimento do conteúdo abordado, de forma que é imprescindível o acompanhamento do mesmo com um exemplar das Sagradas Escrituras.

APOSTOLICIDADE DA IGREJA

        É preciso entender que, inicialmente, nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo entregou uma série de poderes e, consequentemente, responsabilidades aos seus discípulos e apóstolos. Muitos grupos cristãos tendem a entender, orientados por narrativas distorcidas e historicamente descomprometidas, de que tais poderes e responsabilidades foram dadas por Cristo de forma virtual, como se "jogadas ao vento" e a quem quisessem onde e quanto admiti-las. Contudo, a compreensão da Igreja Siríaca Ortodoxa de Antioquia difere disso, entendendo que o mesmo é um fenômeno que acontece de forma pontual e direcionado. Nas Sagradas Escrituras, podemos encontrar os seguintes poderes e responsabilidades entregues diretamente aos apóstolos:

  • Batizar (Mateus 28,19);
  • Pregar (Marcos 16,15);
  • Perdoar (João 20,23);
  • Celebrar (Lucas 22,19);
  • Ligar e desligar (Mateus 16,19 e Mateus 18,18);
  • Exorcizar (Mateus 10,8);
  • Representar (Lucas 10,16);
  • Curar (Lucas 10,9);
  • Serem testemunhas (Atos 1,8);
  • Autoridade (Lucas 10,19);
  • Falar em nome de Deus (Mates 10,20).
        
        Novamente, é importante ressaltar que tais ordens dadas por Jesus não foram "jogadas ao vento", mas dirigidas de forma específica àqueles que foram chamados por Jesus (Mateus 10,1-40), sendo selecionados entre tantos seguidores, para tal missão (Lucas 6,13). Estes apóstolos, posteriormente e conscientes (Atos 1,15-26) da missão de governar a Igreja, instituíram segundo a autoridade dada por Cristo e à necessidade da Igreja, com o tempo, funções que emanavam de seu carisma, responsabilidades e poderes, como o diaconato (Atos 6,1-6), o presbiterado (Tito 1,5) e o episcopado (1ª Timóteo 3,1).

        Portanto, quando professamos a fé na “Igreja apostólica”, afirmamos que essa Igreja não só foi fundada no tempo pelos apóstolos, mas que sua missão, poderes e responsabilidades emanam diretamente dos apóstolos, permanecendo ininterruptamente viva nos bispos pela sucessão apostólica, e que, ainda e até o volta de Cristo, a Igreja permanecerá exercendo seu apostolado, de batizar, pregar, perdoar, celebrar, ligar e desligar, exorcizar, representar, curar, ser testemunha, exercer sua autoridade e falar em nome de Deus, ou seja, governar sendo, vivendo e morrendo pela Igreja, Corpo Místico de Cristo (Colossenses 1,18 - 1ª Coríntios 12,27 - Romanos 12,4-5).

        Assim, inicialmente o que temos é o apostolado instituído e ordenado por Cristo e exercido por aqueles que diretamente receberam do Filho Unigênito de Deus essa ordem. Posteriormente, estes apóstolos escolhem homens para serem servos, para exercer diaconia (Atos 6,1-6), instituindo assim o diaconato propriamente dito, e não mais aquele serviço espontâneo esperado do todo e qualquer batizado, mas uma doação sob a benção emanada do apostolado, configurando mais que uma função litúrgica ou prática, mais um carisma essencialmente apostólico e, com as escolha dos primeiros diáconos, agora plenamente visível.

        Após isso, aqueles das comunidades que eram mais maduros na fé, eram chamados de “anciãos” termo que pode ser traduzido por "presbíteros", palavra que deriva do grego πρεσβύτερος, que quer dizer "ancião" ou "senhor", a forma comparativa de πρέσβυς "presbys" que significa "homem velho", chamado assim quer pela idade ou pela maturidade. É preciso ressaltar que estes anciãos não são os "anciãos dos judeus" constantemente citados tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, e que ao referir-se a estes, as Sagradas Escrituras deixam claro que se trata de um outro grupo não cristão (Atos 25,15) enquanto os anciãos dos cristãos são identificados como tal (Atos 20,17), ou seja, os "ancião da Igreja". Estes anciãos (presbíteros) eram convidados a participar das assembleias juntamente (Atos 16,4), em comunhão (Atos 15,6) e sob autoridade dos apóstolos (Atos 14,23), compondo o que do grego chamamos de “presbitério” (ou seja, a reunião dos presbíteros ou onde se reúnem). Tal comunhão e exercício do governo da Igreja pelos apóstolos juntamente com os anciãos é nitidamente verificada no chamado "sínodo de Jerusalém" quanto os apóstolos e os anciãos trataram da questão da circuncisão aos convertidos do paganismo (Atos 15,6-29).

        Foram estes anciãos os primeiros a receberem dos apóstolos o poder de ministrar os sacramentos (Atos 14,23) para além da diaconia (seja voluntária pelo batismo ou ordenada pelo poder apostólico), formando o corpo daqueles que, como sacerdotes, ofereciam sacrifícios e, a partir dos apóstolos e juntamente com eles, batizavam, pregavam, perdoavam, celebravam, ligavam e desligavam e eram testemunhas fiéis. Estes são os que tratamos por “padres” até os dias de hoje, reconhecendo neles a paternidade espiritual na instrução e no cuidado das comunidades cristãs (Atos 14,23), confiada a estes homens “maduros da fé” até os nossos dias pela continuidade do poder apostólico exercido pelos bispos. Não à toa, até hoje os sacerdotes siríacos são chamados em siríaco/aramaico de “qashísho” que significa justamente “ancião”, e muitos fiéis os tratam exatamente como “abun qashísho”, ou seja, “nosso pai ancião”. Dada a antiguidade da língua siríaca e sua preservação pela Tradição de nossa Igreja Siríaca Ortodoxa, o termo "ancião" não se separou historicamente do termo "presbítero" na compreensão da igreja e dos fiéis, diferentemente do que encontramos, por exemplo, no ocidente, onde chamar um padre de "ancião" soaria estranho a qualquer católico mediano. Em outras palavras, ninguém é “ordenado padre”, pois o termo “padre” é uma forma carinhosa e respeitosa de tratar os anciãos (os “maduros na fé”) que receberam esse poder e missão dos sucessores dos apóstolos.

        Santo Inácio, bispo de Antioquia, que foi discípulo de São João e ordenado bispo pelo próprio apóstolo São Pedro, sendo seu 3º sucessor na Cátedra de Antioquia, escreveu uma série de cartas à caminho do martírio em Roma no ano 107 d.C.. Em sua Carta à Políbio, então bispo de Trália, ele refere-se aos diáconos, bispos e presbíteros (anciãos) já mostrando como era clara a distinção e a relação destes com a própria noção de ser Igreja:

"Da mesma forma deverão todos respeitar os diáconos como a Jesus Cristo, como também ao bispo que é a imagem do Pai, aos presbíteros, porém como ao se­nado de Deus e ao colégio dos apóstolos. Sem eles, já não se pode falar de Igreja. Estou convencido que em relação a eles assim procedeis, pois recebi e guardo comigo a prova de vossa caridade na pessoa de vosso bispo: sua mesma presença se constitui num grande ensinamento, sua mansidão é um poder" - Carta aos Tralianos - cap. III.

        Há uma ideia comum hoje de que todos os apóstolos teriam sido necessariamente bispos ou mesmo que os bispos são os próprios apóstolos nos dias de hoje, mas a questão não é bem assim, ou pelo menos não nestes termos. Os apóstolos eram apóstolos, e alguns para além disso exerceram o episcopado propriamente dito, enquanto outros não.


        O termo “bispo” que usamos hoje vem  do grego antigo επίσκοπος (episkopos), que significa literalmente “supervisor”. É a junção da palavra ἐπί (epi) que quer dizer "sobre/super" com a palavra σκοπος (skopos) que quer dizer "vista", ou seja, "aquele que vê por cima, pelo alto, que supervisiona". O termo era usado antes do cristianismo para referir-se aos magistrados que ministravam a justiça nas colônias da Grécia antiga. O termo "bispo", portanto, ao ser incorporado ao uso cristão, refere-se à aquele que, sendo um dos apóstolos ou recebendo de um deles o poder de fazê-lo, exerce a função de suceder aos apóstolos no governo de uma porção do povo de Deus, sendo seu “supervisor” em nome dele, em comunhão com os demais, e com seus poderes.

        Vários apóstolos foram bispos, mas é importante compreender que nem todos foram. São Tiago menor, filho de Alfeu, um dos 12 discípulos, também chamado de São Tiago irmão do Senhor, por exemplo, se tornou o primeiro bispo de Jerusalém quando os demais apóstolos se espalharam pelo mundo para pregarem e estabelecerem igrejas deixando São Tiago como o “supervisor” da Igreja em Jerusalém. Ele era uma evidente figura de liderança ainda quando os apóstolos se encontravam em Jerusalém (Atos 15,13) e lá permaneceu com São Pedro após isso (Gálatas 1,19) até que este fosse para Antioquia da Síria. Aliás, o mesmo ocorreu a São Pedro, por exemplo: O líder dos apóstolos não era bispo de Jerusalém, juntamente com todos os outros apóstolos só pelo fato de serem apóstolos, mas se torna bispo quando, ao chegar em Antioquia, permanecer na então capital da grande Síria por vários anos, estabelecendo sua cátedra e sendo seu “supervisor” para qual, antes de partir para Roma, deixou dois sucessores diretos, Santo Evódio e Santo Inácio, que assumiram a cátedra de São Pedro em Antioquia da qual sucedem seus bispos, posteriormente nomeados “Patriarcas”, até os dias de hoje.

Para saber mais sobre a Cátedra de Antioquia, leia o artigo: Festa do Estabelecimento da Cátedra de São Pedro em Antioquia

CONCLUSÃO

    Vemos que, diaconato, presbiterado e episcopado, são todos carismas emanados do poder e autoridade apostólica, que pela imposição das mãos entregaram o carisma próprio do serviço aos diáconos, o carisma da paternidade espiritual na administração das comunidades e dos sacramentos aos presbíteros, ou seja, os "anciãos", no sentido de “maduros na fé” e respeitosamente chamados de “padres” por nós até hoje, e aos bispos entregaram o carisma dos plenos poderes de, como seus supervisores, os sucederem no apostolado, exercendo o poder dado pelo próprio Cristo aos apóstolos e comprometendo-se com suas responsabilidades, sendo aqueles que plenamente perpetuam essas ordens que sustentam a Igreja.
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